sábado, 20 de dezembro de 2025

Enough is Enough! - 30 anos de NÃO ACORDO Mercosul-UE - Jorio Dauster, Manuel María Cáceres e Guillermo Valles Galmés (Folha de S. Paulo)

 Enough is Enough!

Trinta anos depois do Acordo Marco de Madri, a União Europeia continua sem decidir se quer – ou pode – ser um sócio estratégico válido do MERCOSUL.
Jorio Dauster, Manuel María Cáceres e Guillermo Valles Galmés
Folha de S. Paulo, 20/12/2025

Exatamente trinta anos atrás, na Cúpula de Madri de 1995, a Comunidade Europeia e o MERCOSUR assinaram o Acordo Marco Interregional de Cooperação, inaugurando uma ambição inédita: construir uma associação estratégica birregional baseada no comércio, no diálogo político e na cooperação. Com grande pompa e profunda convicção, todos os Chefes de Estado acompanharam a cerimônia. Nós também lá estávamos e trabalhamos em Bruxelas nos anos seguintes.
A Europa representava à época cerca de 30% do PIB mundial e se projetava como sócio global. Hoje seu peso reduziu-se para algo como 14%. O MERCOSUL enxergava nesse vínculo uma via de inserção estável e previsível na economia internacional.
Mas não se trata apenas de que o mercado europeu seja hoje menor. O veto franco-italiano ao acordo não só frustra aquela promessa original de associação: ele a esvazia de conteúdo. Identificamos explicitamente esses dois países porque estiveram presentes em Madri. Não são sócios novos nem atores marginais: foram testemunhas e protagonistas de um compromisso que atualmente se vê frustrado por sua responsabilidade direta.
O que ocourreu não pode ser explicado por dificuldades técnicas nem por supostas incompatibilidades estruturais. Os textos foram negociados, revisados e concluídos. As concessões estiveram na mesa. O MERCOSUL aceitou até mesmo reduzir drasticamente seu acesso ao mercado europeu: a quota relativa à carne bovina ficou limitada a ínfimas 90.000 toneladas anuais (peso das carcaças). O equivalente a um hambúrguer por pessoa em um ano! Mesmo assim se argumenta que a identidade cultural da agricultura francesa estaria em perigo. Não é verdade. O que fracassou foi a política. E, em particular, a política europeia.
Como adverte o brilhante Informe Draghi de dezembro último, o problema europeu consiste na incapacidade de decidir. Uma Comissão que anuncia e Estados membros que vetam compõem uma União que regula em excesso, coordena pouco e executa mal. Nesse contexto, nenhum sócio externo pode levar a sério compromissos que a Europa não consegue sustentar nem mesmo internamente.
O próprio comissário europeu de Comércio, Maroš Šefčovič, admitiu poucos dias atrás no Financial Times que o acordo com o MERCOSUL é uma questão de “credibilidade e previsibilidade” para a União Europeia, exigindo uma “decisão estratégica”. O problema é que tal decisão nunca chega. Quando a Comissão reconhece o que está em jogo e os Estados membros continuam a bloquear, a falta de credibilidade deixa de ser um risco futuro para converter-se em um dado do presente. Como a triste realidade atual.
A União Europeia, antes defensora do livre comércio baseado em regras, passou a refugiar-se numa lógica defensiva, dominada por pressões internas e uma crescente incoerência entre discurso e ação. Em nome de padrões ambientais, sociais ou sanitários, apresentam exigências tardias e reinterpretações unilaterais que alteram o equilíbrio pactuado. Bruxelas preconiza padrões que ela própria não consegue cumprir.
A mensagem é preocupante. Num mundo marcado pela fragmentação e competição geopolítica, a União Europeia renuncia a consolidar uma aliança natural com uma região com a qual compartilha valores e história. Pior ainda: afeta negativamente sua credibilidade como ator capaz de fechar acordos complexos e honrar negociações prolongadas.
Os países do MERCOSUL podem manter sua paciência estratégica, porém não indefinidamente. Devem considerar os custos de oportunidade e olhar com mais decisão para a Ásia-Pacífico. No tocante à Europa, os custos são ainda maiores: sua incapacidade de transformar trinta anos de diálogo em um acordo efetivo debilita a própria ideia de associação estratégica.
Trinta anos depois de Madrid, a pergunta já não é por que razão fracassou este acordo, e sim o que diz tal fracasso acerca da vontade europeia de exercer uma liderança internacional quando essa liderança é mais necessária que nunca. É agora ou nunca.
Enough is Enough! Ou, para que se entenda bem em francês: Ça suffit !

Três vozes com experiência direta:
Jorio Dauster (Brasil): Ex-embaixador junto à União Europeia e negociador da dívida externa brasileira. Foi presidente do Instituto Brasileiro do Café e CEO da companhia de mineração VALE.
Manuel María Cáceres (Paraguai): Ex-vice-ministro de Relações Exteriores e ex-embaixador junto à União Europeia, Estados Unidos, OEA, Argentina e Brasil.
Guillermo Valles Galmés (Uruguai): Ex-vice-chanceler; embaixador na China, junto à União Europeia. OMC e Brasil; ex-diretor de Comércio da UNCTAD.

O “corolário Trump” à Doutrina Monroe - Paulo Roberto de Almeida (Revista Será?)

 A estratégia de Trump para o “quintal” do Hemisfério Ocidental

Trump

Trump

Donald Trump liberou, no final de novembro de 2025, a nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos, apresentando-a, como é do seu estilo, em tom grandiloquente:

Nos últimos nove meses, trouxemos de volta nossa nação – e o mundo –, à beira da catástrofe e do desastre. Depois de quatro anos de fraqueza, de extremismo, de fracassos mortais, minha administração avançou com urgência e rapidez histórica para restaurar a força americana no país e no exterior, e trouxe paz e estabilidade ao nosso mundo [sic]. Nenhuma administração na história [sic bis] alcançou uma reviravolta tão dramática em tão pouco tempo. (disponível: https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2025/12/2025-National-Security-Strategy.pdf).

O corpo do texto não é menos altissonante em suas pretensões imperiais: nada é modesto nessa nova doutrina, trumpiana, de segurança nacional, inovando em relação a documentos similares anteriores. Os EUA já tiveram grandes estratégias no século XX. A primeira, desenhada ao início da Guerra Fria, em 1947, contou com aportes significativos de militares e de técnicos vinculados à segurança nacional, inclusive à diplomacia, como a “doutrina da contenção” (da União Soviética), sugerida pelo diplomata George Kennan. Depois acrescentaram algumas “teorias”, como a do dominó, que se revelou um desastre: levou ao “over stretch”, que impôs um excesso de extensão militar – no Vietnã, por exemplo –, bases completas por toda parte e compromissos inviáveis economicamente.

A quebra do padrão de Bretton Woods, em 1971, sinalizou a ruptura de um sistema que já era insustentável desde o final dos anos 1950. Mas, enquanto perdurou o dinamismo econômico e político, o poderio americano continuou a se expandir pela força de atração de sua economia e de um regime de liberdades inigualável no mundo, atraindo imigrantes de todos os tipos e cores, braços e cérebros de todas as partes. Uma consulta aos premiados do Nobel revela quantos estrangeiros, trabalhando em laboratórios americanos, o receberam.

Até que um descendente de imigrantes furiosamente xenófobo resolveu “corrigir” essa abertura, para ele indesejável, postura que recebeu enorme destaque na nova estratégia, como se o fechamento do império aos estrangeiros pudesse inverter seu declínio relativo, ou como se os imigrantes representassem qualquer ameaça à segurança nacional de um país que conta com inúmeros estrangeiros em áreas sensíveis das políticas de Estado.  Sua segunda preocupação se exerce em face do renascimento e fortalecimento de um velho império asiático, mas a China só quer exportar seus bens e serviços, não o “comunismo”.

Em lugar de definir uma estratégia de complementaridade com o gigante asiático, em prol de uma prosperidade comum, os paranoicos da nova estratégia preferiram adotar uma postura de enfrentamento em todos os continentes. A estrutura geográfica do documento começa pelo próprio Hemisfério Ocidental, no qual se perfila, ao Sul, uma América Latina pouco dinâmica, mas que aparece como um problema. A brutalidade da doutrina estratégica já se revela naprimeira frase da seção sobre o “Corolário Trump à Doutrina Monroe”:

Depois de anos de negligência, os Estados Unidos vão reafirmar e impor a Doutrina Monroe para restaurar a preeminência americana no Hemisfério Ocidental, para nossa pátria e o nosso acesso às geografias-chave em toda a região. (p. 15)

O fato de classificar a nova estratégia para o hemisfério como sendo um “Corolário Trump à doutrina Monroe” já revela a imensa ignorância de seus formuladores, que exibem uma prepotência em relação ao Hemisfério que há muito tempo não se via na política externa regional do Big Brother. Começa pelo fato de que a Doutrina Monroe original (1823), uma mensagem do presidente ao Congresso, não se destinava a estabelecer qualquer preeminência americana no Hemisfério, mas estava dirigida aos absolutismos europeus da Santa Aliança, em suas pretensões de recolonizar suas antigas colônias ibero-americanas.

O fato de identificar o “corolário Trump” à Doutrina Monroe não tem absolutamente nada a ver com a original, já que esse “corolário” foi uma leitura acintosamente imperialista, introduzida pelo presidente Theodore Roosevelt, o líder dos “Rough Riders”, os voluntários americanos envolvidos na revolução cubana de 1898 e contemporâneos da guerra hispano-americana do mesmo ano. Ele era vice-presidente de McKinley, assassinado em 1901, e queria legitimar novas intervenções dos Estados Unidos nas ilhas do Caribe e nos países da América Central. Esse primeiro Roosevelt, tio de Franklin, era um imperialista desabrido que recomendava: “fale macio, mas carregue um grande porrete”. Ele não inaugurou, mas expandiu desavergonhadamente a era imperialista dos Estados Unidos, também analisada criticamente por Oliveira Lima, jovem secretário da legação brasileira em Washington, nos anos 1890, em seu primeiro livro “internacional”: Nos Estados Unidos: impressões políticas e sociais (1899; eu o fiz republicar pelo Senado Federal 110 anos depois, em 2009).

Sua “emenda” justificava não apenas o direito, mas o dever dos EUA de intervir nos assuntos domésticos das nações do continente em todos os casos nos quais o próprio governo americano considerasse que havia um perigo iminente de revoltas políticas ou qualquer outro tipo de desordem. Até aquele momento eram os europeus que continuavam a interferir nos assuntos internos de países da região, como ainda o fizeram em 1902-1903, na Venezuela, quando o presidente Cipriano Castro repudiou a dívida externa e barcos da Grã-Bretanha, da Alemanha e da Itália impuseram um bloqueio naval contra o país. Castro, uma espécie de Chávez avant la lettre, confiava em que, pela doutrina Monroe, os Estados Unidos não permitiriam uma invasão militar europeia, mas Roosevelt entendeu que se deveria apenas objetar a uma possível ocupação territorial, e não a uma intervenção militar. O governo americano assistiu de forma complacente ao bombardeio de Maracaibo, com o que Castro acedeu a um processo de arbitragem. O “corolário Roosevelt” emergiu na sequência dessa intervenção. O assunto foi tratado na segunda conferência da paz da Haia (1907), quando o chanceler argentino José Maria Drago propôs a não cobrança pela força de dívidas soberanas, mas os próprios Estados Unidos propunham a doutrina Porter, recomendando arbitragem antes do uso da força. Rui Barbosa estava lá e transmitiu suas impressões a Rio Branco.

Nas duas décadas seguintes, a cada conferência interamericana, os latino-americanos insistiam no fim das intervenções, sem sucesso porém. Apenas em 1934, o sobrinho Franklin Roosevelt, eleito presidente no ano anterior, preocupado com novas incursões europeias no que já era considerado um “quintal americano”, consentiu em substituir o “corolário” do tio pela Good Neighbor Policy, ainda assim longe do panamericanismo multilateral e respeitoso da independência dos “vizinhos” defendido pelo Brasil e alguns outros países. Na era da OEA, as intervenções militares foram menos frequentes; ainda assim ficaram à disposição do irmão maior, cada vez que ele julgasse necessário ou urgente: Cuba em 1961, República Dominicana em 1965 (com a participação da ditadura militar brasileira), depois Panamá, Granada e outras interferências clandestinas nos assuntos internos dos “países turbulentos”.

Na continuidade do primeiro parágrafo “hemisférico”, a truculência possessiva, unilateral e brutal, prossegue em toda a sua petulância:

Nós vamos denegar a competidores não-hemisféricos a possibilidade de posicionar forças ou outras capacidades ameaçadoras, ou possuir ou controlar ativos estratégicos vitais, em nosso [sic] Hemisfério. Este ‘Corolário Trump’ à Doutrina Monroe é uma restauração potente e de senso comum do poder e das prioridades americanas, consistente com os interesses da segurança americana. (p. 15).

Seguem-se três páginas sobre os métodos a serem utilizados para tal finalidade: recrutar e expandir, ou seja, a pretensão de incorporar e de ampliar “sócios” e “aliados na região para alcançar seus objetivos, como se os agentes trumpistas pudessem determinar sozinhos e unilateralmente o curso dos eventos, da evolução política e da sua própria interação no resto do continente. O recrutamento se daria pela seleção de amigos “para controlar a migração, eliminar o fluxo de drogas e para reforçar a estabilidade e a segurança em terra e no mar” (p. 16). O restante da seção é dedicado às várias tarefas do “Enlist and Expand”, inclusive o recrutamento de “campeões regionais” e alguma expansão em novas presenças militares na região, com ativação de guarda costeira e naval para o controle das rotas marítimas, chegando até ao uso de “força letal” para compensar o insucesso na manutenção da lei e da ordem.

A nova estratégia está destinada ao fracasso, e não apenas no Hemisfério Ocidental. Mas, enquanto durar o poder dos ignorantes no império declinante, ela está provavelmente destinada a provocar maiores fracassos e desapontamentos, para os próprios EUA, para os vizinhos ao sul do Rio Grande e no resto do mundo. A razão pode ser explicada pela própria concepção míope do documento: ele não parece ter tido o cuidado de “recrutar e expandir” o número e a diversidade de seus formuladores, mas permaneceu restrito ao pequeno núcleo de seguidores, bajuladores, conversos e submissos ao chefe autoritário, apenas focados em apresentar suas fantasias numa terminologia grandiosa, aparentemente triunfante, mas completamente artificial na situação atual de disputa de poder com outro grande império.

Logo após a seção dedicada ao Hemisfério Ocidental, o documento foca na Ásia, de onde virão provavelmente os piores fracassos da “estratégia”, baseada numa nova doutrina de “contenção”, simplesmente inaplicável, absurda e equivocada. A Europa, genericamente, vem em seguida, com todo o desprezo que lhe devotam os trumpistas-raiz. Os “aliados europeus”, hoje desprezados, não vão protestar pelo tratamento, porque seria politicamente incorreto e muito pouco diplomático.

A Rússia praticamente não é mencionada, a não ser quanto à necessidade de restabelecer a “estabilidade estratégica” com o invasor da Ucrânia, já pensando, provavelmente, na “estabilidade” dos novos e lucrativos negócios. O suposto “adversário”, a China, tampouco vai reagir; ao contrário, ficará quieto. Afinal de contas, como recomendou Sun Tzu (500 a.C.), não se deve fazer nada quando o seu “inimigo” estiver fazendo bobagens. Raras vezes na história mundial um grande império teve o cuidado de documentar e de registrar o caminho do seu próprio declínio.


O retorno da Doutrina Monroe - Hubert Alquéres (Revista Será?)

 O retorno da Doutrina Monroe

Doutrina Monroe

Doutrina Monroe

A Estratégia de Segurança Nacional do governo Donald Trump, anunciada recentemente, representa a mais profunda inflexão da política externa americana desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em suas 33 páginas, o documento enuncia de forma direta o que já vinha sendo percebido por analistas e diplomatas: o abandono explícito da ordem liberal internacional construída a partir de 1945. Pela primeira vez em oito décadas, Washington deixa de organizar sua política externa em torno de alianças multilaterais, previsibilidade institucional e distinções normativas entre democracias e autocracias.

Os valores que davam aos Estados Unidos o papel de guardião do mundo “livre e ocidental” são substituídos por um pragmatismo no qual se aceita a divisão do mundo entre esferas de influência das principais potências: Estados Unidos, China e Rússia. A Europa, que Donald Trump qualificou como decadente, perde relevância na estratégia trumpista, assim como o sistema de defesa do Atlântico Norte, a OTAN. Dessa maneira, Putin fica de mãos livres para avançar na Ucrânia e na Eurásia, e Xi Jinping, na Ásia e em regiões do Indo-Pacífico. É a lei dos mais fortes subjugando os demais. Nesse reordenamento mundial, manda quem pode e obedece quem tem juízo.

A comparação com Ronald Reagan ajuda a dimensionar a mudança. Reagan também exerceu liderança assertiva, pressionou aliados e adversários e defendeu interesses americanos com firmeza. Mas o fez dentro de uma lógica de fortalecimento das instituições internacionais e de consolidação da ordem liberal. O atual movimento, ao contrário, rompe com essa tradição ao substituir liderança por imposição circunstancial e previsibilidade por improviso.

A prioridade de Donald Trump é outra: sua própria área de influência, o “Hemisfério Ocidental”. Particularmente a América Latina, que seu Secretário, Pete Hegseth, chamou de “quintal” dos Estados Unidos.

A Doutrina Monroe, criada há 200 anos, ressurge das cinzas. Proclamada pelo presidente dos EUA James Monroe em 1823, declarava o continente americano fechado para novas colonizações europeias e proibia a intervenção europeia nos assuntos das nações americanas, sob o lema “América para os americanos”. Inicialmente defensiva, pretendia proteger as novas repúblicas da América Latina da recolonização, mas evoluiu para justificar o intervencionismo e a hegemonia dos EUA na região, tornando-se um símbolo do imperialismo americano.

O trecho mais emblemático do documento da nova estratégia não deixa margem a dúvidas: “Após anos de negligência, os Estados Unidos reafirmarão e farão cumprir a Doutrina Monroe para restaurar a preeminência americana no Hemisfério Ocidental e proteger nosso acesso a áreas-chave em toda a região.” Mais adiante, o texto explicita seu escopo: os EUA “negarão a concorrentes de fora a capacidade de posicionar forças ou controlar ativos estrategicamente vitais na região”. Não se trata de retórica vaga ou formulação diplomática ambígua. Trata-se de uma geopolítica que recoloca a América Latina no centro da estratégia de segurança dos Estados Unidos e restaura, de maneira aberta, a lógica das esferas de influência.

O embaixador Rubens Barbosa, em artigo publicado no Estado de São Paulo, foi direto ao afirmar que o documento “na prática, afirma que a região pertence à área de influência dos Estados Unidos”. Em outras palavras: não se trata apenas de uma mudança de tom, mas da institucionalização de uma visão de mundo que recoloca a América Latina no papel que ocupava durante a Guerra Fria: o de zona tutelada, sensível à presença militar, econômica e tecnológica de potências rivais.

É nesse contexto que a América Latina reaparece como prioridade. Sob o rótulo de “Hemisfério Ocidental”, o documento prevê maior presença naval, operações ampliadas contra cartéis, vigilância sobre minerais estratégicos (como lítio e terras raras) e monitoramento intensivo de cadeias críticas de suprimentos. Ou seja, áreas sensíveis para o futuro tecnológico e energético dos EUA. A região passa a ser vista não como plataforma indispensável para a segurança nacional, devendo ser protegida contra “interferências de potências externas”, em referência clara à China e, em menor grau, à Rússia.

Esse redesenho tem impactos profundos para o Brasil e seus vizinhos. A ascensão chinesa consolidou a presença de Pequim em portos, telecomunicações, energia e minérios; a Rússia mantém parcerias militares em vários países; o Irã constrói relações políticas e logísticas em territórios específicos. A nova estratégia americana sinaliza que tais movimentos não serão mais tolerados como parte do jogo diplomático corrente. O que antes era questão de comércio ou desenvolvimento passa a ser enquadrado como desafio à segurança nacional. O resultado provável é um aumento da pressão política, econômica e militar para limitar a inserção de potências externas na região — processo que tende a gerar atritos crescentes com governos que buscam maior autonomia na política externa.

Nesse quadro, o retorno da Doutrina Monroe pode representar uma ameaça direta à soberania nacional dos países latino-americanos. Não apenas no caso da Venezuela, que corre o risco de uma ação militar direta, mas também do Brasil. No nosso caso, possuímos a segunda maior reserva mundial de terras raras e atraímos vultosos investimentos chineses em tecnologia, energia, portos e 5G. Ou seja, a disputa por cadeias produtivas críticas nos coloca no centro da geopolítica americana.

Esse retorno ao paradigma das esferas de influência tem duas implicações centrais. A primeira é global: a ordem liberal surgida em 1945 está sendo substituída por uma ordem de contenção e rivalidades, na qual grandes potências delimitam zonas de interesse exclusivas. A segunda é regional: a América Latina volta a ser tratada como extensão da segurança americana. O desafio para os países latino-americanos será preservar margens de autonomia neste cenário.

A geopolítica voltou, e voltou com o vocabulário do século XIX. Por isso mesmo, fazem todo sentido as palavras do ex-ministro do STF Celso de Mello, ao qualificar a nova política de Trump como uma arrogância imperial: “Trata-se, a um só tempo, de gesto anacrônico, de vocação hegemônica e de grave retrocesso histórico, pois reedita fórmulas obsoletas que o Direito Internacional e a consciência democrática das nações há muito repudiaram”.

Diante dessa nova realidade, caberá aos governos latino-americanos articular estratégias capazes de proteger seus interesses sem provocar confrontos diretos com a potência hegemônica do hemisfério.

O retorno da Doutrina Monroe, sob essa forma pragmática e desinstitucionalizada, não significa necessariamente um retorno ao passado, mas aponta para um futuro mais áspero. Um mundo em que regras cedem lugar a relações de força, e em que países médios precisam navegar com cautela entre interesses conflitantes.

O desafio brasileiro será preservar espaços de soberania e decisão num ambiente internacional cada vez menos tolerante à ambiguidade.

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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.

O destino do Brasil? Uma tartaruga? - Paulo Roberto de Almeida

O destino do Brasil? Uma tartaruga?

Paulo Roberto de Almeida

Nota sobre os desafios políticos ao desenvolvimento do Brasil

Esse “destino” é o de avançar muito lentamente, a menos de uma mudança cultural e educacional integradora de sua população mais humilde.

O principal problema do Brasil é o de uma classe política (uma casta aberta a todos os oportunistas) predatória, focada em seus ganhos exclusivos, dedicada a se manter no populismo de baixo clero, mantido e alimentado pelos fundos Partidário e Eleitoral (que deveriam ser eliminados) e pelo estupro orçamentário das emendas parlamentares concebidas justamente para abastecer a casta predatória de politicos mediocres.

O esforço da população deveria a partir de agora dirigir-se à eliminação desses três focos de corrupção e de desperdicio de recursos públicos.

Isso não será fácil, pois depende de uma mudança radical na consciência politica da população, o que só advirá com uma educação de qualidade.

Estimo que tais mudanças para melhor podem durar cerca de três gerações, mas apenas se a oligarquização da politica pela casta predatória e corrupta atualmente no poder real (o Parlamento) começar a ser contida por melhorias reais nas percepções políticas da maioria da população, o que só pode vir de uma melhor educação nas camadas mais humildes do povo. Esse é um processo que pode tomar mais de duas gerações.

Mas não é preciso aguardar tão longe; melhorias incrementais podem ser obtidas a médio prazo.

Partidos políticos são entidades de direito privado e não podem ser finsnciados com recursos públicos, assim como sindicatos setoriais ou centrais sindicais não podem ser abastecidos com recursos coletados via impostos diretos ou indiretos.

Da mesma forma, Fundo Eleitoral não pode existir como auto-atribuição de politicos eleitos: tem de ser extinto totalmente.

Finalmente, a prática predatória e corrupta das emendas parlamentares compulsórias deve ser eliminada em quaisquer de suas formas, pois são canais diretos de corrupção e de destruição de qualquer politica racional de investimentos, tornando cada parlamentar (deputados ou senadores) em vereadores federais. Elas devem ser eliminadas, retomando-se a prática anual do ordenamento de despesas segundo prioridades nacionais estabelecidas no orçamento plurianual e nas diretrizes orçamentárias anuais.

A nação tem três prioridades, se quiser avançar além da assistência pública estatal, que, em suas diversas modalidades, atinge atualmente cerca de 1/3 da população.

Nenhum país cresceu e se desenvolveu à base da assistência pública. O progresso só pode vir de uma economia de livres mercados, com base numa educação básica e técnico-profissional de alta qualidade (o que está longe de existir no Brasil atual), com uma base produtiva integrada aos mercados mundiais, comércio liberal e receptividade aos investimentos diretos estrangeiros.

Mas tudo depende de uma boa governança, hoje impossível pela dominação da politica de uma casta predatória, que deriva seu poder dos três mecanismos expropriatórios já descritos: os dois fundos ilegítimos e o estupro orçamentário das emendas. 

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 20/12/2025


Alternâncias e conformismo: política externa e diplomacia do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Alternâncias e conformismo na diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida

Em democracias vibrantes, com alternância de poder, a política externa pode ter tonalidades diferentes entre um governo e outro.

Diplomacias assertivas podem assegurar certa continuidade das políticas, desde que baseadas numa concepção coerente dos interesses nacionais com certa fidelidade doutrinal a princípios e valores consensuais na sociedade. 

Mas a diplomacia pode também ser conformista, ao aceitar qualquer nova orientação sem o necessário estudo e uma adequada fundamentação naqueles princípios e valores e no consenso com respeito aos interesses nacionais pensados pelo corpo diplomático permanente. Submissão disciplinada não é exatamente a postura de um corpo diplomático orgulhoso de sua identidade com a validação democrática de novas orientações em política externa.

Não creio que hierarquia e disciplina possam ser principios válidos para o exercício responsável de uma diplomacia assertiva.

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 20/12/2025


Revista Será?: edição de 20 de dezembro de 2025: O mundo marcha para a direita? - Paulo Roberto de Almeida

ANO XIV Nº688 - A SEMANA NA REVISTA SERÁ?

Revista Será?
Desde 2012 acompanhando o fluxo da história.
ANO XIV Nº688

Recife, 19 de dezembro de 2025.

Caros leitores,

Há semanas em que o mundo parece acelerar, comprimindo crises, memórias e dilemas morais em um mesmo fôlego histórico. Esta edição da Revista Será? nasce desse sentimento de urgência: compreender o presente sem abdicar da reflexão, e pensar a política, a história e a cultura como dimensões inseparáveis da experiência humana.

Abrimos com o editorial “Trump ameaça a América Latina”, no qual examinamos os riscos de uma nova escalada hegemônica dos Estados Unidos sobre a região. Em “O retorno da Doutrina Monroe”, Hubert Alquéres aprofunda essa análise ao mostrar como velhas doutrinas ressurgem em novas roupagens geopolíticas. Paulo Roberto de Almeida, em “O mundo marcha para a direita? Retornamos cem anos no passado?”, amplia o horizonte e nos convida a refletir sobre o avanço global do autoritarismo e seus paralelos históricos. Já Rui Martins, em “A ONU Poderá Falir em 2026?”, lança luz sobre a crise financeira e política que ameaça a principal instituição da governança internacional.

No plano nacional, Tibério Canuto assina “Os Bolsonaros não valem uma missa”, um texto incisivo sobre o isolamento político e simbólico do bolsonarismo, lido à luz do pragmatismo das relações internacionais. A edição se abre também ao registro sensível da memória: em “Fragmentos de Memória: II Guerra Mundial”, Helga Hoffmann transforma lembranças de infância em reflexão histórica e ética. Paulo Gustavo, em “Hannah Arendt e o Natal”, aproxima filosofia e experiência humana para pensar o recomeço em tempos sombrios. Por fim, José Paulo Cavalcanti Filho, em “O Futuro das Utopias”, revisita o imaginário utópico para lembrar que, mais do que destinos, as utopias são forças que nos fazem caminhar.

Encerramos, como sempre, com o olhar crítico e mordaz da charge de Elson, na Última Página.

Boa leitura.
Os Editores

Índice

Trump ameaça a América Latina - editorial
O retorno da Doutrina Monroe - Hubert Alquéres
O mundo marcha para a direita? Retornamos cem anos no passado? - Paulo Roberto de Almeida
A ONU Poderá Falir em 2026? - Rui Martins
Os Bolsonaros não valem uma missa -Tibério Canuto
Fragmentos de Memória: II Guerra Mundial - Helga Hoffmann
Hannah Arendt e o Natal - Paulo Gustavo
O Futuro das Utopias - José Paulo Cavalcanti Filho
Última Página, a charge de Elson


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1611. “O mundo marcha para a direita? Retornamos cem anos no passado?” Publicado na revista Será? (ano xiv, n. 688, 20/12/2025; link: https://revistasera.us2.list-manage.com/track/click... ). Relação de Originais n. 5138.
O mundo marcha para a direita? Retornamos cem anos no passado?
Por Paulo Roberto de Almeida | dez 19, 2025
Considerações sobre o retrocesso autoritário no mundo.
Observando a ascensão de expressões autoritárias em governos de diferentes regiões do mundo, tem-se a impressão de que o mundo realmente marcha para o fenômeno que se convencionou chamar de iliberalismo. A América Latina já foi abundante nos experimentos autoritários, sobretudo de expressão militar, atualmente também sob o formato do populismo de direita. Não se trata de algo novo, embora exista bastante diversidade nas manifestações desse fenômeno, com respeito, por exemplo, ao que se observou cem anos atrás.
O século XX, sobretudo na sua primeira metade, e especialmente na Europa e na América Latina, foi, no dizer de vários historiadores, o século dos extremismos ideológicos, dos totalitarismos expansionistas, tanto à esquerda – o bolchevismo, o comunismo, a III Internacional, o socialismo do planejamento centralizado nos anos do pós-Segunda Guerra –, quanto à direita, sob a forma dos fascismos dos anos entre guerras, os nacionalismos autoritários. Esses fatores foram, aliás, responsáveis pela nova “Guerra de Trinta Anos”, como designou Winston Churchill essa fase de guerras contínuas entre 1914 e 1945.
Depois do término de várias ditaduras de direita – geralmente militares – em países do Terceiro Mundo (na América Latina especialmente) e até mesmo na Europa (países ibéricos, Grécia, Turquia e alguns impulsos em outros países (como o renascimento do fascismo na Itália e na Alemanha), ocorreu, meio século atrás, uma espécie de “onda democratizante”, saudada por acadêmicos e líderes políticos. Mas, impulsos autoritários, tanto à esquerda quanto à direita, voltaram a se manifestar, embora não mais na forma dos antigos golpes de Estado por militares do Terceiro Mundo, e sim sob as novas formas de autoritarismo, geralmente associado ao populismo e, novamente, tanto à esquerda quanto à direita.
Diferentes observadores – revistas como a Economist, entidades como a Freedom House, think tanks e ONGS voltados para esse tipo de estudo – já publicaram estudos qualitativos e quantitativos sobre os avanços do que foi chamado de iliberalismo, até orgulhosamente admitido por um desses autocratas, o primeiro-ministro Viktor Orban, da Hungria, que, efetivamente, designa seu regime como sendo uma “democracia iliberal”. Esses relatórios identificam, mais recentemente, uma redução dos governos plenamente democráticos ao redor do mundo, depois da reversão do autoritarismo nos anos 1980 – caso da América Latina e da Grécia –, ou seja, de ruptura com antigos regimes autoritários, como o salazarismo e o franquismo na península ibérica, processo seguido, no curso dos anos 1990, pela implosão do socialismo de tipo soviético na Europa central e oriental. Junto com a implosão do socialismo e a expansão do globalismo, parecia que uma nova onda democrática poderia se estender a todos os continentes. Que não se culpe Fukuyama por esse tipo de ilusão, pois o seu “fim da história” se referia bem mais ao fim das alternativas equivocadas às economias de mercado do que ao derretimento dos regimes antidemocráticos (seu artigo, aliás, foi escrito bem antes da queda do muro de Berlim e da implosão do comunismo).
Em que os iliberalismos ou autoritarismos recentes diferem das modalidades anteriores, ou seja, os fascismos do entre guerras e as ditaduras militares na América Latina, na África e na Ásia? A diferença, muito clara no caso do chavismo preservado na Venezuela, está em que não existe mais uma ruptura golpista violenta, como nas modalidades clássicas de ditaduras emergindo a partir de golpes de Estado, e sim ocorre uma erosão gradual dos mecanismos, dos princípios e valores democráticos, por meio de pequenas alterações ou “inovações” no funcionamento e na composição das principais instituições de Estado e na forma de atuação dos governos. Geralmente se começa pelo aparelhamento do Estado e do governo com os próprios partidários do dirigente democraticamente eleito, depois se passa pela chantagem, suborno e pressões sobre os meios de comunicação independentes, se alcança os partidos políticos e o próprio parlamento – por meio de cargos, subsídios, transferências de recursos –, assim como a composição e a forma de atuação de órgãos judiciais, inclusive, quando houver, as instituições que cuidam diretamente das eleições. Essas são as principais modalidades.
Muitos desses mecanismos estão descritos em livros de acadêmicos, como Timothy Snyder, sobre as novas formas de tirania, e Yasha Mounk, sobre o “povo contra a democracia”, entre vários outros autores. Vale a atenção, especialmente, para o trabalho impecável do V-Dem, um instituto multidisciplinar da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, as Varieties of Democracy, com relatórios anuais sobre a erosão democrática no mundo: https://www.v-dem.net/democracy_reports.html.
O Brasil também conheceu essas expressões do novo autoritarismo, provavelmente estimulado pelo primeiro governo Trump (2017-2020), mas também como resultado das crises políticas pós-2013 e o impeachment do quarto governo do PT (2016). Não existe a menor dúvida de que Bolsonaro emergiu a partir de velhas e novas tendências do pensamento e das práticas autoritárias. Ele foi, com seus patrocinadores na direita militar, um agregador, sem ser doutrinário ou sequer pensador (o que seria de toda forma impossível), de diversas correntes de direita e conservadores que estavam mais ou menos retraídas durantes os anos do tucanato (governos FHC, de 1995-2002) e do lulopetismo (2003-2016), ambos representantes da socialdemocracia, mas possuindo o PT diversas conexões com as ditaduras de esquerda na América Latina, dada a composição do partido com muitos egressos dos movimentos de oposição armada à ditadura militar nos anos 1960-70.
No caso de Bolsonaro, ele foi um representante repugnante não apenas dos autoritários do regime militar, mas daquela categoria que Elio Gaspari chamou de “tigres”, ou seja, a fração mais totalitária e repressiva da ditadura, os homens das catacumbas, os torturadores e assassinos, militares e civis, engajados na eliminação dos “comunistas” daqueles tempos. Ele próprio confessou admirar o “representante-modelo” da tortura e da repressão daquele momento, o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos mais bárbaros integrantes da “tigrada” das catacumbas do regime. Na verdade, Bolsonaro nunca teve alguma ideologia definida, além dessa adesão ao extremismo de direita, mas atendendo rusticamente a seus instintos primitivos, não a alguma doutrina anticomunista formalmente organizada e racional. Ele próprio confessou, certa vez, admirar o coronel Hugo Chávez, mostrando uma propensão a seguir seu exemplo de asfixiamento progressivo da democracia política.
O Brasil sempre teve impulsos autoritários muito evidentes desde o advento da República – um mero golpe militar improvisado, segundo vários historiadores –, impulsos que acabaram se concretizando em governos ditatoriais: o Estado Novo (1937-1945), tentativas de golpes antes e depois disso, nos anos 1950, finalmente a ditadura tecnocrática de 1964 a 1985. Mas, mesmo nos momentos democráticos, o regime democrático sempre foi de muito baixa qualidade, geralmente sob controle das oligarquias rurais, na primeira metade do século XX, depois crescentemente sob a influência das elites industriais e, também, as do setor primário. Só nos tornamos uma democracia de massas a partir da reconstitucionalização de 1988, com a admissão do voto dos analfabetos, e ainda assim com as inclinações elitistas conhecidas (segundo a CF-1988, só ficam na cadeia comum os desprovidos de um canudo qualquer). As elites políticas expressam geralmente o poder do dinheiro, ou seja, os interesses das elites dominantes, os dos donos do capital, mas também houve uma progressiva evolução para uma representação política mais conforme aos diferentes estratos sociais da população.
Na República Velha, observou Gilberto Amado, as eleições eram falsas, mas a representação era verdadeira, ou seja, eram eleitos representantes cosmopolitas das elites educadas. Na democracia de massas do período atual, pode-se dizer que as eleições são verdadeiras, mas a representação pode ser parcialmente falsa, expressando o corporativismo crescente na sociedade, com muitos representantes de grupos de interesse, sindicalistas de diversas categorias profissionais, lobbies setoriais (bancada ruralista, evangélicos, etc). Muitos desses grupos setoriais são inegavelmente autoritários, sem serem totalitários, já que não existem mais condições de se defender um regime de extrema-direita atendendo perfeitamente aos impulsos fascistas dos partidos dessa vertente. O presidente Bolsonaro foi um representante especialmente inepto dessas correntes, pois sequer teve condições de conduzir o Brasil a um golpe militar classicamente putchista, ou a um populismo autoritário ao estilo chavista. Nem o seu conservadorismo era verdadeiro, pois sempre partilhou os mesmos instintos estatistas e estatizantes de grande parte da esquerda atrasada da América Latina. Na Europa do pós-guerra, diversos partidos socialistas e comunistas caminharam no sentido de adotar a visão reformista da economia de mercado (como o SPD alemão desde os anos 1950; os socialistas franceses nos anos 1980 e até o New Labour de Tony Blair, nos anos 1990). Por outro lado, vários partidos comunistas, anteriormente plenamente stalinistas, começaram a aceitar, no curso dos anos 1980, as práticas democráticas, como no caso do “eurocomunismo” (PCI italiano, PCE espanhol e outros, menos o de Portugal).
No caso de Bolsonaro, seria duvidoso identificá-lo na mesma categoria dos líderes iliberais dotados de doutrina, pois que ele nunca teve condições intelectuais mínimas para dirigir um movimento programaticamente estruturado na direita brasileira. Ele foi apenas o representante confuso desses instintos autoritários saudosistas da ditadura militar, sem qualquer doutrina formal. O restante da direita é fundamentalmente oligárquico, mas, dada a confusão ideológica reinante no antipetismo militante, até liberais econômicos acabaram se juntando aos radicais da direita. Isso demonstra que, no caso do Brasil, trata-se de um fenômeno maleável das diversas tendências conservadoras, não de um movimento fascista no conceito classicamente europeu.
O trumpismo, na sua segunda versão (2025-202?), é bem mais agressivo nas suas tendências autoritárias, sendo que o seu mais famoso bilionário faz campanha aberta em favor dos movimentos mais extremistas na Europa, financiando partidos radicais que também acabam apoiando a Rússia no seu conservadorismo extremado (e são por ela apoiados). Trump ascende perigosamente, com ajuda até da Suprema Corte, no limiar de quebras constitucionais e legais no seu novo furor autoritário, depois de parcialmente contido no primeiro mandato. Mas, no caso de Bolsonaro, agora “engaiolado”, a extrema-direita mais estúpida já não mais poderá se beneficiar da pregação da extrema-direita conservadora americana, como ocorreu em 2018, o que nos dispensa, pelo menos na vertente da política externa e da diplomacia, de uma recaída nas piores vergonhas que o Brasil atravessou entre 2019 e 2022 no plano internacional.
Como diplomata não convencional, censurado sob o tucanato, levado ao ostracismo funcional sob o lulopetismo, depois expurgado com raiva no bolsolavismo esquizofrênico, contemplo com um pouco de alívio nossas tendências persistentes, e competitivas, ao conservadorismo oligárquico de direita ou ao populismo estatizante de esquerda. São reduzidas as chances de um novo iliberalismo autoritário no Brasil. Olhando ao redor, concluo que existem coisas piores ocorrendo no mundo…
Paulo Roberto de Almeida

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