O mundo marcha para a direita? Retornamos cem anos no passado?
Por Paulo Roberto de Almeida | dez 19, 2025
Considerações sobre o retrocesso autoritário no mundo.
Observando a ascensão de expressões autoritárias em governos de diferentes regiões do mundo, tem-se a impressão de que o mundo realmente marcha para o fenômeno que se convencionou chamar de iliberalismo. A América Latina já foi abundante nos experimentos autoritários, sobretudo de expressão militar, atualmente também sob o formato do populismo de direita. Não se trata de algo novo, embora exista bastante diversidade nas manifestações desse fenômeno, com respeito, por exemplo, ao que se observou cem anos atrás.
O século XX, sobretudo na sua primeira metade, e especialmente na Europa e na América Latina, foi, no dizer de vários historiadores, o século dos extremismos ideológicos, dos totalitarismos expansionistas, tanto à esquerda – o bolchevismo, o comunismo, a III Internacional, o socialismo do planejamento centralizado nos anos do pós-Segunda Guerra –, quanto à direita, sob a forma dos fascismos dos anos entre guerras, os nacionalismos autoritários. Esses fatores foram, aliás, responsáveis pela nova “Guerra de Trinta Anos”, como designou Winston Churchill essa fase de guerras contínuas entre 1914 e 1945.
Depois do término de várias ditaduras de direita – geralmente militares – em países do Terceiro Mundo (na América Latina especialmente) e até mesmo na Europa (países ibéricos, Grécia, Turquia e alguns impulsos em outros países (como o renascimento do fascismo na Itália e na Alemanha), ocorreu, meio século atrás, uma espécie de “onda democratizante”, saudada por acadêmicos e líderes políticos. Mas, impulsos autoritários, tanto à esquerda quanto à direita, voltaram a se manifestar, embora não mais na forma dos antigos golpes de Estado por militares do Terceiro Mundo, e sim sob as novas formas de autoritarismo, geralmente associado ao populismo e, novamente, tanto à esquerda quanto à direita.
Diferentes observadores – revistas como a Economist, entidades como a Freedom House, think tanks e ONGS voltados para esse tipo de estudo – já publicaram estudos qualitativos e quantitativos sobre os avanços do que foi chamado de iliberalismo, até orgulhosamente admitido por um desses autocratas, o primeiro-ministro Viktor Orban, da Hungria, que, efetivamente, designa seu regime como sendo uma “democracia iliberal”. Esses relatórios identificam, mais recentemente, uma redução dos governos plenamente democráticos ao redor do mundo, depois da reversão do autoritarismo nos anos 1980 – caso da América Latina e da Grécia –, ou seja, de ruptura com antigos regimes autoritários, como o salazarismo e o franquismo na península ibérica, processo seguido, no curso dos anos 1990, pela implosão do socialismo de tipo soviético na Europa central e oriental. Junto com a implosão do socialismo e a expansão do globalismo, parecia que uma nova onda democrática poderia se estender a todos os continentes. Que não se culpe Fukuyama por esse tipo de ilusão, pois o seu “fim da história” se referia bem mais ao fim das alternativas equivocadas às economias de mercado do que ao derretimento dos regimes antidemocráticos (seu artigo, aliás, foi escrito bem antes da queda do muro de Berlim e da implosão do comunismo).
Em que os iliberalismos ou autoritarismos recentes diferem das modalidades anteriores, ou seja, os fascismos do entre guerras e as ditaduras militares na América Latina, na África e na Ásia? A diferença, muito clara no caso do chavismo preservado na Venezuela, está em que não existe mais uma ruptura golpista violenta, como nas modalidades clássicas de ditaduras emergindo a partir de golpes de Estado, e sim ocorre uma erosão gradual dos mecanismos, dos princípios e valores democráticos, por meio de pequenas alterações ou “inovações” no funcionamento e na composição das principais instituições de Estado e na forma de atuação dos governos. Geralmente se começa pelo aparelhamento do Estado e do governo com os próprios partidários do dirigente democraticamente eleito, depois se passa pela chantagem, suborno e pressões sobre os meios de comunicação independentes, se alcança os partidos políticos e o próprio parlamento – por meio de cargos, subsídios, transferências de recursos –, assim como a composição e a forma de atuação de órgãos judiciais, inclusive, quando houver, as instituições que cuidam diretamente das eleições. Essas são as principais modalidades.
Muitos desses mecanismos estão descritos em livros de acadêmicos, como Timothy Snyder, sobre as novas formas de tirania, e Yasha Mounk, sobre o “povo contra a democracia”, entre vários outros autores. Vale a atenção, especialmente, para o trabalho impecável do V-Dem, um instituto multidisciplinar da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, as Varieties of Democracy, com relatórios anuais sobre a erosão democrática no mundo:
https://www.v-dem.net/democracy_reports.html.
O Brasil também conheceu essas expressões do novo autoritarismo, provavelmente estimulado pelo primeiro governo Trump (2017-2020), mas também como resultado das crises políticas pós-2013 e o impeachment do quarto governo do PT (2016). Não existe a menor dúvida de que Bolsonaro emergiu a partir de velhas e novas tendências do pensamento e das práticas autoritárias. Ele foi, com seus patrocinadores na direita militar, um agregador, sem ser doutrinário ou sequer pensador (o que seria de toda forma impossível), de diversas correntes de direita e conservadores que estavam mais ou menos retraídas durantes os anos do tucanato (governos FHC, de 1995-2002) e do lulopetismo (2003-2016), ambos representantes da socialdemocracia, mas possuindo o PT diversas conexões com as ditaduras de esquerda na América Latina, dada a composição do partido com muitos egressos dos movimentos de oposição armada à ditadura militar nos anos 1960-70.
No caso de Bolsonaro, ele foi um representante repugnante não apenas dos autoritários do regime militar, mas daquela categoria que Elio Gaspari chamou de “tigres”, ou seja, a fração mais totalitária e repressiva da ditadura, os homens das catacumbas, os torturadores e assassinos, militares e civis, engajados na eliminação dos “comunistas” daqueles tempos. Ele próprio confessou admirar o “representante-modelo” da tortura e da repressão daquele momento, o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos mais bárbaros integrantes da “tigrada” das catacumbas do regime. Na verdade, Bolsonaro nunca teve alguma ideologia definida, além dessa adesão ao extremismo de direita, mas atendendo rusticamente a seus instintos primitivos, não a alguma doutrina anticomunista formalmente organizada e racional. Ele próprio confessou, certa vez, admirar o coronel Hugo Chávez, mostrando uma propensão a seguir seu exemplo de asfixiamento progressivo da democracia política.
O Brasil sempre teve impulsos autoritários muito evidentes desde o advento da República – um mero golpe militar improvisado, segundo vários historiadores –, impulsos que acabaram se concretizando em governos ditatoriais: o Estado Novo (1937-1945), tentativas de golpes antes e depois disso, nos anos 1950, finalmente a ditadura tecnocrática de 1964 a 1985. Mas, mesmo nos momentos democráticos, o regime democrático sempre foi de muito baixa qualidade, geralmente sob controle das oligarquias rurais, na primeira metade do século XX, depois crescentemente sob a influência das elites industriais e, também, as do setor primário. Só nos tornamos uma democracia de massas a partir da reconstitucionalização de 1988, com a admissão do voto dos analfabetos, e ainda assim com as inclinações elitistas conhecidas (segundo a CF-1988, só ficam na cadeia comum os desprovidos de um canudo qualquer). As elites políticas expressam geralmente o poder do dinheiro, ou seja, os interesses das elites dominantes, os dos donos do capital, mas também houve uma progressiva evolução para uma representação política mais conforme aos diferentes estratos sociais da população.
Na República Velha, observou Gilberto Amado, as eleições eram falsas, mas a representação era verdadeira, ou seja, eram eleitos representantes cosmopolitas das elites educadas. Na democracia de massas do período atual, pode-se dizer que as eleições são verdadeiras, mas a representação pode ser parcialmente falsa, expressando o corporativismo crescente na sociedade, com muitos representantes de grupos de interesse, sindicalistas de diversas categorias profissionais, lobbies setoriais (bancada ruralista, evangélicos, etc). Muitos desses grupos setoriais são inegavelmente autoritários, sem serem totalitários, já que não existem mais condições de se defender um regime de extrema-direita atendendo perfeitamente aos impulsos fascistas dos partidos dessa vertente. O presidente Bolsonaro foi um representante especialmente inepto dessas correntes, pois sequer teve condições de conduzir o Brasil a um golpe militar classicamente putchista, ou a um populismo autoritário ao estilo chavista. Nem o seu conservadorismo era verdadeiro, pois sempre partilhou os mesmos instintos estatistas e estatizantes de grande parte da esquerda atrasada da América Latina. Na Europa do pós-guerra, diversos partidos socialistas e comunistas caminharam no sentido de adotar a visão reformista da economia de mercado (como o SPD alemão desde os anos 1950; os socialistas franceses nos anos 1980 e até o New Labour de Tony Blair, nos anos 1990). Por outro lado, vários partidos comunistas, anteriormente plenamente stalinistas, começaram a aceitar, no curso dos anos 1980, as práticas democráticas, como no caso do “eurocomunismo” (PCI italiano, PCE espanhol e outros, menos o de Portugal).
No caso de Bolsonaro, seria duvidoso identificá-lo na mesma categoria dos líderes iliberais dotados de doutrina, pois que ele nunca teve condições intelectuais mínimas para dirigir um movimento programaticamente estruturado na direita brasileira. Ele foi apenas o representante confuso desses instintos autoritários saudosistas da ditadura militar, sem qualquer doutrina formal. O restante da direita é fundamentalmente oligárquico, mas, dada a confusão ideológica reinante no antipetismo militante, até liberais econômicos acabaram se juntando aos radicais da direita. Isso demonstra que, no caso do Brasil, trata-se de um fenômeno maleável das diversas tendências conservadoras, não de um movimento fascista no conceito classicamente europeu.
O trumpismo, na sua segunda versão (2025-202?), é bem mais agressivo nas suas tendências autoritárias, sendo que o seu mais famoso bilionário faz campanha aberta em favor dos movimentos mais extremistas na Europa, financiando partidos radicais que também acabam apoiando a Rússia no seu conservadorismo extremado (e são por ela apoiados). Trump ascende perigosamente, com ajuda até da Suprema Corte, no limiar de quebras constitucionais e legais no seu novo furor autoritário, depois de parcialmente contido no primeiro mandato. Mas, no caso de Bolsonaro, agora “engaiolado”, a extrema-direita mais estúpida já não mais poderá se beneficiar da pregação da extrema-direita conservadora americana, como ocorreu em 2018, o que nos dispensa, pelo menos na vertente da política externa e da diplomacia, de uma recaída nas piores vergonhas que o Brasil atravessou entre 2019 e 2022 no plano internacional.
Como diplomata não convencional, censurado sob o tucanato, levado ao ostracismo funcional sob o lulopetismo, depois expurgado com raiva no bolsolavismo esquizofrênico, contemplo com um pouco de alívio nossas tendências persistentes, e competitivas, ao conservadorismo oligárquico de direita ou ao populismo estatizante de esquerda. São reduzidas as chances de um novo iliberalismo autoritário no Brasil. Olhando ao redor, concluo que existem coisas piores ocorrendo no mundo…
Brasília, 5138, 9 dezembro 2025, 4 p. Revisto 13/12/2025